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ATO PENITENCIAL II

    Voltando à culpa, ou pelo menos, a minha, vou narrar um fato pessoal para não divagar demais e não sair fora da rota desta vez...
    Confesso que já fui petista, esquerdista e um pouco vitimista por um período da minha vida. Ajudei, e muito, a montar o Partido dos Trabalhadores na minha cidade, conheci personalidade de expressão nacional do partido, convivi com dirigentes regionais e seus grupos, fui membro de movimento estudantil em faculdade pública, estive no meio de reuniões e passeatas contra o “imperialismo yanque” e gritei palavras de ordem contra o capitalismo. Vi de perto a política esquerdista e seus principais braços; estudantes, sindicatos de professores e membros da Teologia da Libertação que se embrenham em boas consciências desavisadas. Vi como a ideologia reinante, dita progressista, cria seus filhotes no meio da burocracia estatal e atrasa o progresso nacional, vi as muitas formas de pressionar os neófitos a entrarem e se tornarem a infantaria de partidos e vi como é difícil sair do oceano de argumentos e interesses que as forças revolucionárias possuem. Mas um dia, enfim, depois de muito gestar dúvidas, críticas e desilusões; venci a barreiras do “movimento” e por longos caminhos compreendi (e ainda estudo para compreender) a realidade sem disfarces, falácias, opiniões ou percepções pré-moldadas em gabinetes.
    Digo estas coisas por pensar que eu deveria ser digno de respeito por ter conseguido mudar de convicção ideológica, em um meio onde poucos o conseguem. Porém, não é isto que ocorre e volta e meia vem um inspirado pelo pai da tentação e me diz: “Você é esquerdista” ou “a culpa é sua por esse povo...”, enfim, volta e outra ganho de presente um passado digno de vergonha.
    Mas vamos lá, não seria isso o peso para me recolher em lamúrias e covardia pelas ideias que tive e tenho. Porque se a confissão do mea-culpa é uma virtude cristã, o aceitar os açoites das ignorâncias dos próximos e a perseverança na luta pela correção também o são e a vida continua. 




ATO PENITENCIAL

    Mea-culpa é uma expressão que significa “minha culpa”, ou “minha falha” e não “meia-culpa” que significaria que apenas metade de uma dada culpa seria minha, como fazem alguns políticos. 
    Na tradição católica (presente também em liturgias protestantes mais antigas), o confessar-se culpado é o início para a redenção da alma, não sendo à toa que a expressão é pronunciada em uma declaração pública logo no início das missas, no chamado Ato Penitencial.
    Errar, tomar consciência do erro, confessar e lutar para não cometer tal ato ou outros parecidos; deveria ser algo comum, compreensível e louvável a todo cristão e a toda pessoa que vive em um ambiente dado como cristão, pois, a sociabilidade mínima passa por saber quais são as bases do pensamento predominante.
    O projeto divino de redenção é muito bem construído, mas contra ele trabalha o rei da divisão, o grão-mestre da confusão e o pai da pequenez; e mesmo que uma boa alma, que depois de lutas internas elevou a consciência a níveis maiores e difíceis de serem atingidos, vem os espíritos zombeteiros para sempre voltar à velha acusação de uma antiga culpa: “mas ele já fez isso...”, “agora nem adianta mais...”, “não acredito que tenha mudado...” e por ai vai.
    É certo, também, que a tal conversão pode ser usada como artifício ou argumento para cometer corrupções até maiores que as confessadas, o sujeito confessa algo esperando com isso livrar-se de possíveis punições ou outras coisas do tipo, afinal de contas, estamos no Brasil, onde o pecado, a safadeza e a malandragem têm uma expertise bem acima da média mundial, devido a excelência dos laboratórios aqui montados desde não sei quando, mas enfim... Acho que por minha culpa, meio que perdi o que queria dizer com esta crônica... 



POBRE PODER.

    Se existe uma coisa que a história já cansou de provar é que o poder político pessoal tem prazo de validade para acabar. Independente do caráter do governante, da suas forças morais, retóricas, militares ou econômicas; um belo dia ele se encontra incapaz de guiar, controlar, articular e comandar a quem ele um dia governou.
    Às vezes, a decadência do poder se faz lentamente, por longos anos (ver o ex-ditador zimbabuano, Robert Mugabe), ou então, acontece meteoricamente como foi a subida até ele (ver o ex-presidente, Fernando Collor). O fato é que o poder sempre muda de mãos e quanto maior o apego do governante a ele, maior é o sofrimento na hora fatídica do adeus. Talvez, foi consumido por tal sofrimento que um ex-presidente do Brasil deu um tiro no próprio coração quando se viu sem alternativas e prestes a ser deposto do cargo máximo da nação (ver Getúlio Vargas). Faltou alguém dizer para ele: “Calma amigo! Aceita que dói menos!”
    Não só na democracia é assim. Stalin governou com mão de ferro até o último suspiro, mas nada além dele. Júlio Cesar foi o maior dos imperadores romanos, mas no fim, foi golpeado pelas costas por um amigo-traidor e sangrou no chão até morrer. Xerxes, rei e autoproclamado deus persa, um dia chorou diante de seu monumental exército ao pensar que dali a cem anos todos estariam mortos. Ou ainda, temos a lenda que envolve Napoleão Bonaparte, imperador francês, que no auge de seu poder e glória, no desfile nacional que comemorava seu aniversário e quando estava rodeado por irmãos que ele pôs nos tronos de vários reinos e por irmãs que ele fez casar com reis e se tornarem rainhas na Europa; ele, no alto do palanque, se vira para sua mãezinha e num tom esnobe e pergunta se ela estava gostando de ver a glória do filho; onde teve a famosa resposta: “Está tudo muito bonito e bom, meu filho, mas vamos ver se dura, né!” Não durou o tanto que ele provavelmente imaginava e pouco tempo depois ele morria sozinho, exilado e envenenado numa ilha distante de sua terra.

    Poder perpétuo, supremo e ilimitado, até hoje, só se ouviu dizer de um...     



SEM TEVÊ

    Às vezes eu passo a sua frente e nem olho, às vezes olho, mas ela não consegue prender a minha atenção. Às vezes, na maior das boas vontades, eu tento dedicar algum tempo a sua existência, mas não tem jeito, ela não me convence mais, ela é uma velha decadente que perdeu seu encanto para mim.
    Ela, que ainda ilude muitos por ai, tenta a todo o momento se relacionar com sua adversária mais forte e interessante. Em alguns poucos pontos a relação até flui, mas no geral acredito que seja um fato que se confirma dia após dia, da nova comer a velha.
    Calma! A coisa não é tão explicita e vulgar como parece ser. Na verdade a coisa é mais implícita e degenerada. Alguns podem ver o fato sob a ótica romântica, outros veem a loucura e o individualismo radical. Fato é que a televisão vai perdendo, dia-a-dia, cada vez mais espaço para a internet e seus múltiplos aparelhos no tempo e na atenção das pessoas.  Inclusive, com a onda de tecnologia se avolumando cada dia mais rápido e com maior intensidade, é possível prever que o velho sistema de televisão, canais e sua relação com o público vão desta para uma melhor.
    No futuro, muitos ainda dirão com tom de lamento sobre o fim daquela que um dia será chamado de “instrumento” que reuniu a família em torno de noticiários, novelas e programas de auditório, tudo isso em queixas do tipo: “Há! No tempo em que nos reunimos na sala para assistir a tevê...”. O que não deixará de ser uma ironia, pois ao longo dos tempos a televisão sempre foi acusada de propagar alienação, degeneração moral e de distanciar as pessoas. Ou seja, pobre tevê, depois de transformar as pessoas em números consumíveis será usada e jogada fora, mas aqui se faz aqui se paga.   
    E, que bom!



A IGUALDADE

Ele observa.

Ela fala.
Ele vê a forma bonita.
Ela repara nas roupas e no porte.
Ele se encanta com a voz e com o perfume.
Ela faz charme e observa seu carro.
Ele sente o coração acelerar.
Ela pensa rápido e friamente.
Ele faz pose de dominador.
Ela finge ser dominada.
Ele fica neurótico com o passado.
Ela põe em dúvida o futuro.
Ele se hipnotiza com o seu quadril.
Ela observa seu status social.
Ele quer todas.
Ela quer o melhor.
Ele se escraviza pela mãe e pelos filhos.
Ela mata pelo filho.
Ele tem obrigação de seguir a obrigação.
Ela teria de segui-lo.
Ele tenta ganhar muito.
Ela tenta perder pouco.
Ele pensa em Jesus, Maria e José.
Ela debulha o rosário.
Ele reflete sobre o mapa.
Ela pensa no destino.
Ele pensa que vai morrer.
Ela sabe que vai chorar.
Ele a observa.
Ela fala, dele para ele.
Ele aperta.
Ela sorri.






MACHADO DE ASSIS, FUTEBOL E CALCINHA PRETA.

  A vida copia a arte e a arte copia a vida. Sendo assim, vejamos como uma salada composta pelo esporte “paixão nacional”, acrescida de nosso melhor escritor em todos os tempos e temperada por um grupo musical do nosso meio “underground verde-amarelo” formam um sabor conhecido, um prato sofisticado e apetitoso por mesclar sabores variados e que desce muito bem com um bom copo de ironia tinta suave.

     A discussão em torno da procura de uma moderna interpretação e, quiçá, de uma nova redação “Dom Casmurro” de Machado de Assis já gerou desde discussões acaloradas até a formação de grupos de extermínios.

     Vejamos os exemplos de algumas facções com pretensões críticas:

     Uns tentam emplacar a ideia de que Bentinho tivesse uma “vontade oculta de realizar práticas sexuais alternativas” e, assim, possuísse uma paixão secreta por Escobar; outras, mais psicologistas, vêem Capitu como uma pobre vítima de um Bentinho neurótico, um enfermo de transtorno obsessivo-compulsivo e ditador cruel.
Tudo besteira. Quem realmente conhece Machado de Assis sabe que sua sutileza não se passa em um nível tão abstrato, ela se desenvolvia nas cruéis evidências dos fatos (sim! o Bruxo de Cosme Velho tinha “sangue no zóio”!), Machado não pinta opiniões, ele destrincha fatos e para melhor entender o mundo machadiano é interessante conhecer o mundo futebolista brasileiro, pois, afinal de contas, é tudo farinha saída do mesmo moinho ontológico tupiniquim.

     Nós, os amantes do futebol (e eu me incluo, sem nenhum pudor ou receio, nesse meio), sabemos das limitações, corrupções e crueldades do nosso amado esporte, porém somos todos defensores de nossa “organização criminosa”. Não somos vítimas viciadas e ignorantes, somos soldados voluntários do tradicionalismo nacional: somos terroristas contra o projeto de escandinavização do Brasil (onde os corintianos são os “homens-bomba”!) e nossa principal arma, assim como ocorre com Bentinho, é a dúvida.

     Os modelos do futebol americano, europeu e japonês não nos servem. Veja o descaso com que tratamos o futebol feminino que é símbolo de igualdade e civilidade no mundo. Dissemos, às vezes, com uma leve dor na consciência: “Que pena que o futebol das mulheres não é valorizado no Brasil…”… Não gastamos, porém, três minutos para assistir a uma partida da Copa do Mundo delas. Em compensação, acompanhamos entusiasticamente a série B3 do Campeonato Paulista. Portanto, não tem jeito… Não somos e não queremos ser bons cidadãos civilizados e emancipados, somos velhos mafiosos, sempre na espreita, sempre em grupo, conspirando nas esquinas do Brasil, numa eterna confabulação em prol de nossa “irmandade cultural futebolesca”. Os boleiros brasileiros, assim como Bentinho, sempre mijarão em pé, e provavelmente fora do vaso, quando forem à Suécia.

     Machado de Assis na sua maldosa genialidade acabou descrevendo o que na sua época era apenas a semente de nossa sociedade futebolística. Bentinho se relaciona com Capitu como nós nos relacionamos com o futebol. Acima de tudo o protagonista do romance ama a bela e sedutora Capitu, porém, ele sabe perfeitamente que o que ela tem de bela ela tem de mau-caratismo. Sua paixão, porém, o impede de se afastar, por isso ele lança a dúvida na tentativa de justificar o fato de estar com ela.

     “Dom Casmurro” não é um livro/dúvida como a maioria das pessoas o interpreta, mas sim um livro/engano.

     Bentinho tem certeza de que sua bela Capitu é uma “vagaba de 5ª categoria”. Ele entanto nos engana com suas dúvidas, abusando dos maus instintos que a nossa noção de justiça pós-moderna, politicamente correta, “sandraanenbergueana” (ver o Jornal Hoje da Rede Globo e sua âncora feliz) e sem se importar de parecer idiota, desde que não o pressionemos a abandonar sua amada.
Da mesma forma que Capitu, o futebol, com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, nos seduz, deixando como única saída digna as dúvidas e reclamações sobre sua lisura. Simples assim. Somos apenas um pouco mais sutis que Machado. Não ousamos duvidar da lisura do esporte bretão. Não diretamente… Duvidamos ao questionar a honestidade dos dirigentes dos clubes, em sua maioria gângsteres, e que fazem dos seus clubes a extensão de seus impérios; ou quando questionamos a transparência da CBF, que é composta e mantida pelos mesmos dirigentes dos clubes.

     Enfim, o futebol brasileiro é uma instituição que foi feita para nunca ser totalmente honesta e mesmo assim, como Bentinho duvida da honestidade de Capitu, questionamos a integridade dos homens que dirigem esse esporte, como se algum dia pudesse haver algo diferente. A nossa defesa é o discurso da esperança de que o futebol um dia possa ser algo transparente, assim como a defesa de Bentinho é a dúvida de que Capitu possa não o ter traído. Porque no final das contas, tanto a esperança como a dúvida são sempre portas abertas para uma possível fuga.

     O tal de Machado de Assis é divino e cruel, doce e maldoso, como o amor. Já Bentinho é esperto e fraco, enganado e enganador, como todos nós. E Capitu é bela e corrupta, caprichosa e arrebatadora, como o futebol.

     E para expressar essa alma brasileira, não foram competentes o bastante aqueles que sempre pretenderam julgar a nação do alto de suas canções, tais como: Legião Urbana, com seu “niilismo carpidor”; ou Chico Buarque, com seu “idealismo plebeu”; ou ainda algum “cult legalzinho”… e tão pouco a filosofia “indescritível e convencida” de Caetano Veloso, mas somente nossa cultura marginal, na voz de uma banda de forró punk-brega chamada Calcinha Preta, ao cantar: “Você não vale nada, mas eu gosto de você, você não vale nada, mas eu gosto de você, tudo que eu queria era saber por quê?”.

     Capitu não vale nada, mas eu gosto dela, diria Bentinho; O futebol não vale nada, mas gostamos dele, diríamos nós. Só ficando uma questão, que provavelmente nunca será respondida: o porquê.


Obs: Texto de 2012.





FELIZES INFELIZES.

     Em um banco de rodoviária, as duas horas de uma tarde de muito calor, fui obrigado a prestar atenção na conversa de duas mulheres sentadas próximas. As duas mulheres, uma mais jovem e bonita e a outra mais erada e bem vestida, começaram, como se começa toda conversa entre conhecidos que se vêm ocasionalmente, com trivialidades até que a mais jovem começa a narrar sua pobre sina.
         - Ela fez de tudo para acabar com meu namoro e tenho certeza que tem coisa dela no fato da loja não me contratar como fixa depois que terminou o contrato de temporária. Aquela mulher não presta, não presta. Ela me olhava me rebaixando, querendo sempre me diminuir. Eu não sei o que fiz para ela, mas aquela infeliz faz de tudo para tornar minha vida infeliz também.
         Claro que a amiga concordou e ainda deu mais argumentos contra a tal “infeliz”, mesmo dizendo não conhecê-la e dando seguimento à conversa até eu pegar meu ônibus para viajar com aquela “infeliz” no pensamento.
         Seria ela tão ruim assim? Existiria uma pessoa no mundo que só planejasse o mal contra outra que, digamos a verdade, não aparentava ter tantos atributos assim para ser invejada? Seria tudo verdade? Seria uma pequena parte verdade? Seria real a existência da “infeliz”? Tudo não passaria de uma autopromoção disfarçada, uma inimiga fictícia para tirar a vida do tédio e mostrar para a amiga que ela não estava tão mal assim? Será que a jovem acreditava piamente naquilo tudo mesmo que na realidade as coisas não fossem bem assim, ou, nada assim? Seria ela uma criminosa que matou uma ilusão, um sonho ou algo que o valha? Ou seria a jovem mais uma vitima de vitimismo tentando esconder as derrotas do dia-a-dia com desculpas pré-fabricadas?

         Na verdade, não sei de nada, só sei que as duas amigas estavam bem e felizes naqueles instantes em que falavam mal da tal “infeliz”.









O Charruador e Outros Contos

Sinopse do livro O CHARRUADOR E OUTROS CONTOS De Gianfrancesco Tornich Pela plataforma CLUBE DE AUTORES    Temos aqui um livro de contos q...