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MACHADO DE ASSIS, FUTEBOL E CALCINHA PRETA.

  A vida copia a arte e a arte copia a vida. Sendo assim, vejamos como uma salada composta pelo esporte “paixão nacional”, acrescida de nosso melhor escritor em todos os tempos e temperada por um grupo musical do nosso meio “underground verde-amarelo” formam um sabor conhecido, um prato sofisticado e apetitoso por mesclar sabores variados e que desce muito bem com um bom copo de ironia tinta suave.

     A discussão em torno da procura de uma moderna interpretação e, quiçá, de uma nova redação “Dom Casmurro” de Machado de Assis já gerou desde discussões acaloradas até a formação de grupos de extermínios.

     Vejamos os exemplos de algumas facções com pretensões críticas:

     Uns tentam emplacar a ideia de que Bentinho tivesse uma “vontade oculta de realizar práticas sexuais alternativas” e, assim, possuísse uma paixão secreta por Escobar; outras, mais psicologistas, vêem Capitu como uma pobre vítima de um Bentinho neurótico, um enfermo de transtorno obsessivo-compulsivo e ditador cruel.
Tudo besteira. Quem realmente conhece Machado de Assis sabe que sua sutileza não se passa em um nível tão abstrato, ela se desenvolvia nas cruéis evidências dos fatos (sim! o Bruxo de Cosme Velho tinha “sangue no zóio”!), Machado não pinta opiniões, ele destrincha fatos e para melhor entender o mundo machadiano é interessante conhecer o mundo futebolista brasileiro, pois, afinal de contas, é tudo farinha saída do mesmo moinho ontológico tupiniquim.

     Nós, os amantes do futebol (e eu me incluo, sem nenhum pudor ou receio, nesse meio), sabemos das limitações, corrupções e crueldades do nosso amado esporte, porém somos todos defensores de nossa “organização criminosa”. Não somos vítimas viciadas e ignorantes, somos soldados voluntários do tradicionalismo nacional: somos terroristas contra o projeto de escandinavização do Brasil (onde os corintianos são os “homens-bomba”!) e nossa principal arma, assim como ocorre com Bentinho, é a dúvida.

     Os modelos do futebol americano, europeu e japonês não nos servem. Veja o descaso com que tratamos o futebol feminino que é símbolo de igualdade e civilidade no mundo. Dissemos, às vezes, com uma leve dor na consciência: “Que pena que o futebol das mulheres não é valorizado no Brasil…”… Não gastamos, porém, três minutos para assistir a uma partida da Copa do Mundo delas. Em compensação, acompanhamos entusiasticamente a série B3 do Campeonato Paulista. Portanto, não tem jeito… Não somos e não queremos ser bons cidadãos civilizados e emancipados, somos velhos mafiosos, sempre na espreita, sempre em grupo, conspirando nas esquinas do Brasil, numa eterna confabulação em prol de nossa “irmandade cultural futebolesca”. Os boleiros brasileiros, assim como Bentinho, sempre mijarão em pé, e provavelmente fora do vaso, quando forem à Suécia.

     Machado de Assis na sua maldosa genialidade acabou descrevendo o que na sua época era apenas a semente de nossa sociedade futebolística. Bentinho se relaciona com Capitu como nós nos relacionamos com o futebol. Acima de tudo o protagonista do romance ama a bela e sedutora Capitu, porém, ele sabe perfeitamente que o que ela tem de bela ela tem de mau-caratismo. Sua paixão, porém, o impede de se afastar, por isso ele lança a dúvida na tentativa de justificar o fato de estar com ela.

     “Dom Casmurro” não é um livro/dúvida como a maioria das pessoas o interpreta, mas sim um livro/engano.

     Bentinho tem certeza de que sua bela Capitu é uma “vagaba de 5ª categoria”. Ele entanto nos engana com suas dúvidas, abusando dos maus instintos que a nossa noção de justiça pós-moderna, politicamente correta, “sandraanenbergueana” (ver o Jornal Hoje da Rede Globo e sua âncora feliz) e sem se importar de parecer idiota, desde que não o pressionemos a abandonar sua amada.
Da mesma forma que Capitu, o futebol, com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, nos seduz, deixando como única saída digna as dúvidas e reclamações sobre sua lisura. Simples assim. Somos apenas um pouco mais sutis que Machado. Não ousamos duvidar da lisura do esporte bretão. Não diretamente… Duvidamos ao questionar a honestidade dos dirigentes dos clubes, em sua maioria gângsteres, e que fazem dos seus clubes a extensão de seus impérios; ou quando questionamos a transparência da CBF, que é composta e mantida pelos mesmos dirigentes dos clubes.

     Enfim, o futebol brasileiro é uma instituição que foi feita para nunca ser totalmente honesta e mesmo assim, como Bentinho duvida da honestidade de Capitu, questionamos a integridade dos homens que dirigem esse esporte, como se algum dia pudesse haver algo diferente. A nossa defesa é o discurso da esperança de que o futebol um dia possa ser algo transparente, assim como a defesa de Bentinho é a dúvida de que Capitu possa não o ter traído. Porque no final das contas, tanto a esperança como a dúvida são sempre portas abertas para uma possível fuga.

     O tal de Machado de Assis é divino e cruel, doce e maldoso, como o amor. Já Bentinho é esperto e fraco, enganado e enganador, como todos nós. E Capitu é bela e corrupta, caprichosa e arrebatadora, como o futebol.

     E para expressar essa alma brasileira, não foram competentes o bastante aqueles que sempre pretenderam julgar a nação do alto de suas canções, tais como: Legião Urbana, com seu “niilismo carpidor”; ou Chico Buarque, com seu “idealismo plebeu”; ou ainda algum “cult legalzinho”… e tão pouco a filosofia “indescritível e convencida” de Caetano Veloso, mas somente nossa cultura marginal, na voz de uma banda de forró punk-brega chamada Calcinha Preta, ao cantar: “Você não vale nada, mas eu gosto de você, você não vale nada, mas eu gosto de você, tudo que eu queria era saber por quê?”.

     Capitu não vale nada, mas eu gosto dela, diria Bentinho; O futebol não vale nada, mas gostamos dele, diríamos nós. Só ficando uma questão, que provavelmente nunca será respondida: o porquê.


Obs: Texto de 2012.





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